Vassoura (ou ensaio sobre o perdão)

Maria Carolina de Souza
4 min readJan 11, 2022

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O verão chega. Com ele, o fim do ano. Com ele, a percepção de mudança de tempo. Até poucos meses atrás, ainda era verão. Depois, deixou de ser, e agora é de novo. Agora a gente sente esse calor de novo, essa sede que bebe um litro de água e depois volta de novo. E nem é aquele calor ardente de fogo e paixão em música popular, que faz você viver uma insana história de amor. É um calor vagaroso, suga suas energias, te despe aos poucos até você se encontrar vulneravelmente clamando pelo mar, pela areia, pelas correntes de ar.

E é nesse tempo que tem foto do mar em tudo quanto é lugar. A praia se torna esse espaço exibicionista de realidade, tornando-se objeto de desejo por aqueles que, assim como eu, percebem que é hora de fazer uma faxina.

Afinal, a casa está um desastre de sujeira. Posso ouvi-la acusando-me da constante procrastinação que me acompanhou ao longo do ano, gritando que é por isso que a minha vida é uma completa desgraça (ou devo dizer “despraia"). Cada canto exibe suas poeiras acumuladas, como se recordassem as tantas vezes que falei “deixa, consigo fazer isso depois".

E de fato consigo. Chega o verão e com ele, a vassoura que arde a mão. Com ela, o ritmo da canção que já se espalha por todo lugar, dando o ânimo de logo se fazer aquilo que deve-se fazer.

Não sei se é a música, se é o verão, se é o fim do ano, mas sei que essa faxina aqui tem que ser boa. Movo os móveis de lugar, invado os outros cômodos, pego produtos que há muito tempo achei que não usaria mais. Faço da limpeza uma dança com a vassoura até desconhecer se eu ou ela é a responsável pela realização de cada ato.

Além da sujeira tal e qual, as poucas manchas no chão são causadas por movimentos arrastados de mesas e cadeiras. Sei que é só passar o pano umas três ou quatro vezes no mesmo lugar que, com o auxílio do produto, elas logo sairão.

Enquanto me movo, contudo, deparo-me com uma mancha permanente que tantas vezes tentei tirar e fui completamente incapaz. Ela é consequência de uma não tão recente reforma, de uma mudança de fases da minha vida que deixou marcas em mim.

Olho para o chão e penso no que levou ao surgimento dessa mancha. Um descuido na hora de pintar a parede, uma proteção não muito bem montada. O plástico que protegia o chão se moveu num deslize do lugar. Sim, um mero deslize.

E essa mancha não me deixa esquecê-lo. Faço essa faxina para deixar para trás todas as más atitudes que tive durante esse tempo. As paredes, as teis de aranha, os pós não precisam mais brigar comigo. Porque passou, se foi e agora a gente segue em frente.

Mas a mancha me observa com seu olhar de acusação e percebo que não vou conseguir esquecer as marcas que um deslize deixou em mim. Não dá para superar, não dá para seguir em frente, não enquanto ainda existem dias que ficarei estagnada no passado, me perguntando quando será que isso vai passar de fato. Por quanto tempo mais terei de conviver com a dolorosa lembrança da dor. Por quanto tempo mais procrastinarei a faxina por saber que quando pegar na vassoura serei totalmente impotente de me livrar de toda sujeira. Por quantos para sempre vou passar até que essa mancha de fato suma. Para sempre.

A frustração me domina. Sento-me no chão em meio ao pó para chorar tudo o que não sabia que ainda precisava chorar. Sinto um medo terrível de nunca me esquecer desse estrago em meu coração. Sinto-me sozinha, desolada, pois ninguém além de mim e da vassoura sabe por quanto tempo tentei me livrar dessa mancha. O tanto de força que eu fiz para esfregar. As incontáveis batalhas que me geram cicatrizes enquanto ninguém podia me observar. E mesmo assim ela continua aqui, ela ri, ela zomba da minha cara e da minha solidão. Ela fala da minha fraqueza, da minha tolice em continuar, fala que é hora de desistir.

e como eu quero desistir

Estou cansada. Só quero terminar essa faxina e tomar um banho. Não adianta me importar com isso agora. Guardo as lágrimas para o chuveiro, que pelo menos me refresca. Jogo o CIF no chão. As outras manchas podem sair.

Mas uma parte dessa mancha sai.

Fico embasbacada. Passo o pano de novo. E de novo. E de novo. Três ou quatro vezes. Até sair. Como qualquer outra sujeira que surge no chão. Eu sou livre dela. Respiro e rio de mim mesma. Canto e danço alto. Percebo que nem toda mancha é para sempre. Nem as duradouras nem as permanentes. Por que me desesperei?

Não sei qual foi o diferencial. Se foi o CIF. Se foi a força. Se foi ação do tempo. Não importa. De repente entendo que um dia ela iria embora de qualquer jeito, nem que fosse no dia em que essa casa seria demolida.

Agora, então, ela passou. Agora, então, ela foi embora. Já estava na hora de eu parar de me culpar pelo deslize do plástico, de exigir modos de compensação ou apagamento pelo erro que cometi. Precisava olhar de novo para o chão e enxergá-lo como ele de fato é, independente da mancha que estava ali. E agora compreender que outras marcas surgirão, semelhantes a essa ou não, mas que isso não precisa trazer à tona o que já acabou.

Continuo sorrindo. Deixo a vassoura no seu lugar devido. No fim das contas, foi ela que fez o trabalho todo. Agora vou tomar banho, me limpar.

Amanhã tem mar, tem areia. E tem canção de novo.

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Maria Carolina de Souza
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Written by Maria Carolina de Souza

eu nem tenho mais o cabelo loiro, mas essa foto me deixa chique. escrevo sobre a vida, tanto quando ela é boa quanto quando ela é dolorida.

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