comprei um aromatizador de ar.
subi no banco para prendê-lo em cima da porta do banheiro. ativei o modo automático e esperei alguns segundos para vê-lo funcionar.
a princípio eu me pergunto por que fiz isso. sei que sou uma pessoa com tendências muito consumistas, principalmente nessa fase da vida em que tô tentando me adaptar a uma nova realidade. será que não foi algo que comprei na impulsão? quer dizer, ele é cheiroso, eu sei, mas será que realmente é necessário? será que não foi um dinheiro que gastei à toa, um peso que carreguei dentro da sacola pra nada e que no fim das contas não vai fazer diferença nenhuma na minha rotina?
por um instante, penso que posso mesmo me arrepender de ter feito isso. mas já tá feito e não dá pra voltar atrás. olho pro borrifador. olho pra sala ao redor, com as paredes pintadas naquele tom de branco como o gelo (que a gente jura que é cor quando brincamos de adedonha), com os móveis seguindo palhetas neutras que variam entre o preto e o cinza. olho pra porta, minha única proteção contra um assustador mundo lá fora que tenta me consumir. olho pra cozinha e, portanto, para o relógio pendurado.
preciso trabalhar.
pego minha água e me tranco no quarto, sabendo que vou ficar lá por horas. deixo as janelas fechadas a fim de evitar qualquer distração, tendo como única iluminação a lâmpada prestes a se queimar que está segura no teto. abro o notebook e me deixo ser absorvida pela realidade virtual das inúmeras tarefas do dia.
sou engolida por um monte de informações com as quais construo o conhecimento necessário para redigir a dissertação que dá finalidade ao meu mestrado. meu mundo nesse instante se reduz a uma ilimitada quantidade finita de termos filosóficos que utilizo para descrever a história de minha cidade natal — cidade que sinto conhecer como a palma da minha mão, pois vou ao centro e sinto que posso ver cada marco histórico ocorrer diante de meus olhos, como cenas de um cotidiano que nunca vivi.
sou engolida por um mundo de documentos, livros, vídeos, palavras que precisam sair de meus próprios dedos. sou engolida pelo google workspace, preparando slides, corrigindo provas de alunos, procurando por novas ferramentas que façam adolescentes aprenderem pelo menos alguma coisa durante as minhas aulas. sou engolida por uma vida que não me toca, não me abraça, não olha nos meus olhos, não ouve a minha voz. sou engolida por uma vida em que não faço nada ao mesmo tempo em que preciso fazer tudo.
o tempo passa e eu nem vejo. sei porque a minha garrafa de água já está vazia e minha garganta continua seca. pego-a nas mãos, me levanto da cadeira e abro a porta do quarto.
mas a minha casa não é mais a mesma. de súbito sou invadida por uma explosão de cores, ritmos e cheiros que nunca vi antes. minha sala está numa festa para a qual não fui convidada. vejo as paredes se colorirem vividamente de tons de rosa, laranja e verde, como se sozinho um jardim se desenhasse na tela em branco que havia ali. do outro lado da janela fechada, ouço uma bossa nova se tocar, incompatível com o corredor silencioso do meu prédio.
e o cheiro, ah… o cheiro. ele tem cheiro de causa, de origem. tem cheiro de uma voz que conta uma piada no início de um dia que parece ruim, aí faz com que o dia inteiro mude de humor. tem cheiro desse arco celestial colorido que surge no meio da nuvens depois de uma garoa. tem cheiro de picolé de maracujá que tu toma depois do almoço quando volta cansada da escola.
é cheiro de flora que faz a primavera entrar na minha casa quando eu não a tinha convidado.
quando olho pra essa dança invisível que se movimenta diante de mim, esqueço por que estou imovelmente em pé com a mão ainda na maçaneta do meu quarto. por isso olho pra mão e vejo que minhas unhas estão pintadas de um vermelho que não seria tão bonito em qualquer outro dia. ao ver a garrafa de água que seguro, lembro o que vim fazer e o atordoamento passa. preciso voltar. são muitas tarefas pra um dia só.
encho a garrafa e volto pro meu quarto, esquecendo a loucura fora de mim. me tranco novamente, me sento diante do computador novamente e tento matar minha sede.
mas não dá. essa água tá mais gostosa que antes e essa cadeira tá mais desconfortável que antes. esse mundo que se abre dentro de mim parece perder todas as possibilidades de uma vida melhor que eu poderia almejar antes. tudo o que deve ser feito perde o sentido diante de tudo que pode ser feito.
não entendo. não tem lógica.
e eu percebo.
são muitas tarefas pra um dia só.
vejo que esse cheiro também tá no meu quarto. esse cheiro que tem sede por uma vida significativa me pede pra esquecer a tela de um mundo que tenta me aprisionar em checklists e em números que avaliam o meu potencial e o potencial de indivíduos cujas vidas eu afeto não superficialmente. esse cheiro que lembra a alegria, que lembra o descanso de um sétimo dia, se entranha nas minhas narinas, na minha boca, na minha pele, nos meus ouvidos, nos meus olhos.
ele entrou aqui em casa e sem eu perceber, ele tava arrancando as cortinas pra me fazer perceber que a vida é além do quarto no qual me tranco atrás da portas a fim de tentar me proteger de um mundo dolorido que me assusta com o risco de lidar com frustrações que acredito ser incapaz de suportar. aterrorizada com as relações alheias, me prendi numa redoma duma constante insatisfação com a rotina que se enrola numa roda de monotonia e não me permite escapar desse ciclo de não-vida.
por que me permiti sobreviver por todo esse tempo?
saio do quarto e olho pra ele. sem querer comprei esse aromatizador de ar, achando que de nada adiantaria deixá-lo entrar na minha vida, mas de forma automática ele tomou conta de tudo. ele tomou conta do banheiro, da sala, da cozinha e do meu quarto. ele, sem perceber, aromatizou a minha vida, a vida que decidi construir fora da porta desse apartamento. ele me acompanha nesse mundo quando dou bom dia pro meu vizinho, quando rio sozinha na rua, quando canto músicas que nem sabia que poderia conhecer, quando olho pela janela do ônibus e sou confrontada com uma cidade que na verdade nunca prestei atenção.
quando me dou conta, cansada de um dia inteiro sentada diante de um computador com o propósito de construir uma vida sozinha pra mim mesma, eu começo a correr. sem direção, sem sentido, sem me preocupar com a hora que vou chegar. corro perdendo o controle do futuro e as incertezas do passado. corro esquecendo os pequenos propósitos, aproveitando o vento no rosto, o vislumbre das árvores que crescem nesse desconhecido, as novas sensações orgânicas causadas por uma atividade incomum na minha vida. e quem me vê correndo assim deve achar que sou maluca porque corro pra lugar nenhum. mas eles não precisam saber pra onde ou pra que ou pra quem eu corro. você sabe.