Estrelas (ou poeira)

Maria Carolina de Souza
8 min readSep 16, 2021

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Anoiteceu.

Sonolenta, fecho o livro. As páginas acabaram e, lá fora, vejo o céu escuro e a meia dúzia de estrelas que a zona urbana me permite. Vejo também as centenas de luzes que piscam no chão, recordando que a cidade está viva e artificialmente iluminada. Vejo uma lua tímida tão alta que quase está fora do alcance da janela. Penso no quão infinito o céu é, indo além do que meus olhos conseguem enxergar, sendo maior do que minha mente é capaz de assimilar. Olho para o chão, a muitos metros de distância, e vejo pessoas indo de um lado para o outro em meio à poluição sonora que nos caracteriza. Penso no quão infinitamente finita cada uma dessas pessoas é, com complexidades e particularidades além do que meus olhos conseguem enxergar, sendo mais profundas do que minha mente egoica é capaz de assimilar.

Volto meus olhos para dentro de casa. Vejo os móveis que, pelo menos dessa vez, estão limpos, em seus lugares, sem bagunças que os adornem. Vejo o chão, as paredes decoradas, os livros nas prateleiras. A paz me invade ao me dar conta de que uma faxina não é necessária. Tudo está bem. Penso no mundo que existe dentro de mim. Nas suas lembranças, nos seus enredos, nos seus personagens, nas palavras que o descrevem. Penso no seu céu, nas suas cidades, nas pessoas que as habitam. Nas suas paredes, nos seus livros, no seu chão.

Penso no meu escritório. E sinto algo que não sei descrever (ou talvez algo cuja descrição me dê medo).

Medo, é isso. Sinto medo.

Vejo a minha casa vazia e bem cuidada, bem arrumada. Aparentemente, não há nada com o que me preocupar.

Mas algo me preocupa. E está atrás daquela porta.

Não há preparo emocional suficiente para esse instante. Mas eu giro a maçaneta e entro no escritório.

E dói.

Porque ele está lá. Posso vê-lo. Sentado em cima da mesa, como se estivesse me esperando chegar.

Espirro por conta da poeira.

A visão dói. Meu peito aperta. Sinto vontade de chorar.

Como ele ainda pode estar aqui?

O lugar está abafado, mas eu não tenho coragem de me mover até a janela para abri-la, pois ele também está lá. De pé ao lado, apontando para aqueles pontinhos de luz no horizonte que nós nunca soubemos o que era.

Me viro para ligar a luz, mas ele também está lá. Está reclamando da saudade do horário de verão, que a essa hora ainda estaria em plena luz do dia e poderíamos continuar lendo à luz do sol. Mas agora é inverno e escurece mais cedo do que nunca.

Ele também está olhando para a prateleira inundada de livros, cantando suavemente como uma piada interna cheia de carinho

Tantas palavras

Meias palavras

mas incoerentemente nenhuma palavra me atravessa nesse momento. Entre nós já não há nenhuma palavra ou meia palavra a ser dita. Tudo foi pelos ares depois da última vez que elevamos nossas vozes e entoamos todas as palavras e canções que ficaram guardadas por tempos.

E não deveriam ter ficado assim.

E não deveria ter sido assim.

Por que ele ainda está aqui? Por que ele não foi embora de uma vez por todas quando saiu pela porta do nosso apartamento e nunca mais voltou? Por que o fato de eu ter trocado a fechadura não me impediu de encontrá-lo novamente aqui dentro?

Por que eu não consigo deixá-lo ir?

Nosso apartamento

Um pedaço de Saigon

Acendo a luz e canto com ele, andando pelo cômodo em que mais travamos as nossas guerras. Posso ver nossas diferenças gritando umas com as outras, nossos egoísmos se chocando e nossas necessidades individuais de sermos o centro dessa vida entrando em conflito. Vejo que as palavras deixaram marcas nas paredes, na mesa, na estante. Vejo o espelho pendurado e ainda posso distinguir as marcas de batom mal limpadas do dia que eu tentei ir embora. Vejo sobre a mesa as fotos de um casal solitário que nunca soube viver sem o outro.

Me disse adeus no espelho com batom

Passo a mão pela mesa e a poeira cai no chão. Posso imaginar o som da leve colisão, amplificando minha própria solidão. Como um cometa que passa, a mesa está limpa num instante. Essa pequena estrela ilumina as memórias presas ali. O dia em que começamos a namorar, a viagem que fizemos para Porto de Galinhas, as diversas aventuras que compartilhamos. Ilumina até as memórias que não estão registradas em fotografia.

Vai minha estrela

Iluminando

Toda esta cidade

Como um céu de luz neon

Me vejo observando as massagens nos ombros de quem estava trabalhando ali, os cafunés, as marcas das canecas de café que um levava para o outro, os tantos textos escritos e não escritos, as músicas cantadas na playlist interna que nós acionávamos ao estarmos juntos.

Seu brilho silencia todo som

A alegria das lembranças passadas angustia meu peito. Sinto raiva e não sei por quê. A dor começa a me atravessar e a canção que ecoava pelo cômodo se silencia. Sinto medo de descrever. De explicar que estou completamente frustrada. Que todos os dias, desde que você foi embora, eu tento levar a minha vida como se tudo estivesse bem. Reorganizei minha rotina e me esforço para não abrir mão de sequer um segundo do meu cronograma. Faço todas as coisas saudáveis que durante anos contigo jurei que começaria a fazer e nunca fiz. Na verdade, estou atolada de coisas para fazer e sempre durmo cansada e em paz.

Mas nunca estou em paz. Sou ocupada porque não quero pensar em você. Não quero pensar em como você me destruiu. Não quero pensar no vazio que agora é a minha vida, no silêncio que ocupa todos os meus dias. Jogo para escanteio essa frustração que coordena minha realidade, tentando esquecer que você já me fez feliz.

Você não merece ter boas lembranças comigo.

Às vezes

Você anda por aí

Brinca de se entregar

Sonha pra não dormir

As fotos já não estão sobre a mesa. Coloco de volta meu notebook, observo as canetas e os post-its, troco a cadeira por aquela que é a minha favorita e que eu deixava na sala por causa dele.

E por quantas coisas eu passei por causa dele? Quantas vezes me vi passando por aquela porta acreditando que eu não era suficiente e não poderia ser? Quantos dias passei brigando comigo mesma por não conseguir mantê-lo aqui? Quantas inseguranças me permiti ter, horas questionando se ele voltaria para mim ou se correria para outros braços de novo? Quantas vezes eu pensei em deixá-lo de uma vez por todas?

E quase sempre eu penso em te deixar

Um vento frio atravessa a janela. Há dias eu não sei o que é sentir o calor de um abraço. Estou cansada de me sentir sozinha. De passar o tempo conversando com o meu eco que soa pelo espaço. De precisar conviver com esse buraco na alma que eu nunca consegui preencher desde que ele foi embora.

E é só você chegar

Pra eu esquecer de mim

Talvez por isso eu me veja pegando na sua mão e dançando. Ainda lembro do ritmo da nossa música que toca dentro de mim.

Como todas as vezes em que desisti de partir quando te vi chegar, digo para o meu coração que ele pode se sentir seguro dessa vez. Que o abraço dele é o único lugar do mundo onde estamos de fato seguros. Que ao seu lado chego a me esvaziar de mim mesma, dos meus desejos e necessidades, para me encher dele. Do toque dele, da voz dele, da respiração dele.

Talvez por isso eu ainda esteja esperando que ele volte. Danço com ele, falando dos nossos planos de fuga. Danço com ele, falando da gravidade que, por um motivo tão banal, sempre me faz pensar nele. Danço com ele, falando daquele rap que ele me fez ouvir e que eu fingi que gostei.

Danço com ele e penso em todas as vezes que fingi. Fingi que gostava dos filmes, das séries, das piadas, das músicas que ele me recomendava. Fingi que ia embora para que ele pensasse que eu poderia viver sem ele. Fingi que estava bem sozinha, que não era um absurdo estar longe das suas mãos que antigamente me seguravam. Fingi que voltava quando nunca fui embora. Fingi que não esperava noite e dia acordada por ele. Fingi que acreditava que ele esteve ao meu lado durante todo esse tempo. Fingi que acreditava em suas palavras doces e suaves, em suas encenações de amor. Fingi que acreditava em seus planos de estar junto comigo, de me fazer feliz. Fingi que ele de fato me fazia feliz.

Danço com ele e penso em todas as canções que cantei para ele. Que nada mais importava. Que não amá-lo era ainda mais difícil do que amá-lo. Que ele era tudo que eu precisava, que era tudo que eu via. Que de novo e de novo eu cairia por ele. Que por ele eu faria de tudo, desde pular na frente de um trem a segurar uma granada prestes a explodir.

Mas agora eu pego a granada apenas para jogá-la no chão. Deixo que tudo se exploda e não me movo para sair da área de alcance. Deixo que tudo me exploda junto e me permito gritar.

Gritar que estou frustrada. Esse é o sentimento. Esse é o nome do elefante dentro de mim. Todos os dias eu vivi frustrada sem você. Todos os dias eu fiz de tudo para te amar e para te ajudar a me amar enquanto você só brincava de se entregar para mim. Todos os dias eu deixava o meu coração nas suas mãos, confiando que dessa vez você tomaria a decisão certa e escolheria por mim. Escolheria estar comigo.

Nisso tudo, o meu erro foi crer que estar ao seu lado bastaria.

Mas você nunca esteve aqui. Você nunca me amou e nunca se entregou. Você nunca quis estar ao meu lado, nunca quis me apoiar, nunca quis deixar de ser a única pessoa do mundo pra mim. E, por isso, tudo é tão difícil; porque, mesmo depois de você me abandonar, você fez de tudo pra não me deixar te deixar ir embora. Durante todo esse tempo você me fez me agarrar a esse sentimento como uma estrela que já morreu mas cuja luz ainda me atinge.

E eu esqueci tanto de mim que não sei mais quem eu sou depois dessa separação. Antes, eu era sua. Agora, eu não sou mais. Minha identidade é ser ninguém sem você. Aquele amor que me definia se perdeu. Hoje sou apenas a pessoa que não para mais de sofrer depois que se separou de você.

Como se antes eu já não te perdesse todos os dias.

Como se antes a gente já não se separasse todos os dias.

Anoiteceu fora de mim há tempos. Danço com a vassoura, pondo toda a poeira para fora. Ele me disse que certas pessoas devem ficar para trás mesmo e é por isso que eu deixo ele para trás. Deixo o passado para trás. Me esvazio das lembranças boas e das lembranças ruins. Limpo as marcas do café, limpo as marcas do espelho, limpo as marcas das paredes. Jogo fora as fotos e separo para doação as roupas e os livros que ele deixou aqui. Ponho para fora a sua cadeira favorita e o nosso pedaço de Saigon que ainda se ocupava daquele pequeno espaço.

Só não jogo fora a canção. Agora eu danço sozinha, sonhando com o dia em que poderei perdoá-lo e entender que ele não é o grande vilão da história da minha vida. Me esvazio dele, me esvazio de mim e de tudo que uso pra definir a realidade. Olho pro céu e vejo como é bom ver as estrelas na escuridão.

Mas não espero mais você voltar. Não existe mais espaço pra você.

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Maria Carolina de Souza
Maria Carolina de Souza

Written by Maria Carolina de Souza

eu nem tenho mais o cabelo loiro, mas essa foto me deixa chique. escrevo sobre a vida, tanto quando ela é boa quanto quando ela é dolorida.

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