Reflexões sobre religião e colonialismo em “A Última Tragédia”, de Abdulai Sila

Maria Carolina de Souza
6 min readNov 1, 2024

--

https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fwww.youtube.com%2Fwatch%3Fv%3DJpxhT3G4W14&psig=AOvVaw0qmFHrQ_pY2NMDGRiARI99&ust=1730510048602000&source=images&cd=vfe&opi=89978449&ved=0CBcQjhxqFwoTCOD8ubn6uYkDFQAAAAAdAAAAABAJ

Edward Said, tanto em Orientalismo quanto em Cultura e Imperialismo, já defendia a hipótese de que atos desumanizadoras como as colonizações sobre os territórios asiáticos, americanos e africanos necessitavam de uma justificativa discursiva que os respaldasse racionalmente. Isso é relevante para uma cultura marcada pelas filosofias iluministas, que exigiam a aplicação do método empírico das ciências naturais sobre as humanidades a fim de buscar explicar de maneira lógica a importância do domínio europeu sobre as demais civilizações. É claro que essa lógica precisa se submeter ao ímpeto econômico de acúmulo de riquezas e, por isso, ela não pode ser verdadeiramente lógica ou empírica: assim como se defendem as grandes petrolíferas hoje ou a indústria do cigarro, era (ou é) necessário defender, acima de tudo, a supremacia europeia sobre os outros povos a fim de justificar a exploração daqueles sobre os recursos terrenos e humanos destes. De forma mais clara, isso significa que as ciências humanas, como o Orientalismo, e biológicas, como o darwinismo social, serviam não para falar a verdade da igualdade entre as raças, mas para valorizar uma hegemônica em detrimento das restantes. Além das ciências, nesse campo também se encontrava a religião cristã.

A respeito do Orientalismo (uma disciplina europeia que objetivava estudar o Oriente Próximo), SAID (2007) afirma que:

Esse é o apogeu da convicção orientalista. Qualquer generalidade ganha foros de verdade; qualquer lista especulativa de atributos orientais acaba por se aplicar ao comportamento dos orientais no mundo real. Num lado, há ocidentais, e no outro, há árabes-orientais; os primeiros são (em nenhuma ordem particular) racionais, pacíficos, liberais, lógicos, capazes de manter valores reais, sem suspeita natural; os últimos não são nada disso. (p. 85)

Com essa citação, quero ressaltar características da maneira do europeu ver o Oriente que se aplicam a quaisquer descrições dos colonizadores sobre os colonizados, isto é: as ciências humanas que se detinham sobre povos não europeus buscavam, majoritariamente, descrever esses povos como aqueles que não podem ser semelhantes ao europeu (trata-se do Outro como uma negação do Eu). Assim, se a lógica e a razão estão do lado do Eu, no Outro não resta senão a paixão e a barbárie — de modo que ele necessita de uma intervenção para ser salvo. Essa intervenção exigirá uma conversão do Outro aos moldes civilizatórios do Eu, através da assimilação de suas filosofias, costumes e religiões e da concessão de sua historiografia para ser contada pela voz dessa cultura hegemônica.

Todos esses aspectos são belamente denunciados por Manuel Rui, na sua comunicação “Eu e o outro — o invasor ou em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto”, quando ele declara:

Quando chegaste mais velhos contavam estórias. Tudo estava no seu lugar. A água. O som. A luz. Na nossa harmonia. O texto oral. E só era texto não apenas pela fala mas porque havia árvores, parrelas sobre o crepitar de braços da floresta. E era texto porque havia gesto. Texto porque havia dança. Texto porque havia ritual. Texto falado ouvido visto. É certo que podias ter pedido para ouvir e ver as estórias que os mais velhos contavam quando chegaste! Mas não! Preferiste disparar os canhões. A partir daí comecei a pensar que tu não eras tu, mas outro, por me parecer difícil aceitar que da tua identidade fazia parte esse projeto de chegar e bombardear o meu texto. Mais tarde viria a constatar que detinhas mais outra arma poderosa além do canhão: a escrita. E que também sistematicamente no texto que fazias escrito inventavas destruir o meu texto ouvido e visto. Eu sou eu e a minha identidade nunca a havia pensado integrando a destruição do que não me pertence. (RUI, 1985, s/p)

Nessa comunicação, o autor angolano expõe a perspectiva colonizada sobre a história das invasões europeias sobre a sua nação, contando que os canhões necessitam da escrita (ou seja, do discurso) para completarem o seu projeto de destruição do Outro. Essa escrita se submete à missão civilizadora, conforme explica Said, do Império em educar, civilizar e instaurar a ordem e a democracia — conforme os moldes hegemônicos. Assim, a história de Angola perde de vista seu passado histórico e sua tradição oral para assimilar a salvação da civilização propagada pelo português (por exemplo) através da bendita chegada dos europeus à costa africana e da alfabetização promovida pelas igrejas.

Indo mais ao norte da costa africana, é nesse ponto que recupero uma breve análise sobre o romance bissau-guineense de Abdulai Sila, A Última Tragédia, que ficcionaliza, a partir da perspectiva colonizada, a história de sua nação na figura de uma mulher escrava: Ndani. Ainda menina, com cerca de 15 anos, Ndani serve na casa de Dona Maria Deolinda, uma idosa portuguesa relativamente solitária que está prestes a encontrar sentido para a sua vida. Em uma de suas viagens feitas a Portugal (aqui nós já estamos nos localizando no século XX), ela passa por uma tempestade tremenda, momento em que pensa que está prestes a morrer. Esse episódio lhe faz refletir sobre as viagens marítimas empreendidas pelos portugueses na época das Grandes Navegações, quando não havia a tecnologia naval existente na sua época, e os perigos que eles enfrentavam: e por que isso? O que poderia motivar diversos homens a abandonarem suas famílias e suas terras para correrem atrás de tesouros que talvez não existissem, de riquezas que talvez não conquistariam, de glórias que talvez não fossem conseguir alcançar?

Eu queria que alguém conhecedor do caso me explicasse por que foi que os portugueses descobriram a África se o perigo era tão grande. E sabes o que é que aconteceu? O Padre deu-me uma explicação que me impressionou bastante. Sabes o que é que ele disse? Presta atenção que aí é que está o segredo. O Padre disse que os europeus vieram a África para salvar os africanos. (…) ainda disse que dantes esta salvação consistia em levar os negros para longe, lá para as Américas, onde não teriam nem as máscaras, nem as estatuetas que veneravam, e muito menos as árvores sagradas… Mas depois viu-se que este não era o melhor método e então tivemos nós os europeus que vir para a África ensinar a religião cristã e salvar as vossas almas. (SILA, 2011, p. 45, grifos meus)

A resposta dada pelo padre a D. Linda, apesar da aparência, não remete à passagem de Mateus 28:18–20 presente na Bíblia, em que Jesus ordena o ide por todo o mundo para pregar o evangelho, mas ao discurso de uma ordem imperial que faz da assimilação sinônimo de redenção. Isso porque o verdadeiro ide implica em povos de todas as línguas reunidos no céu, que não podem se materializar no apagamento de suas línguas maternas. Isso porque o verdadeiro ide implica em um coração humilde, que não pode se materializar na ganância extrativista da terra alheia como se ela fosse sua — nem na sua própria terra, como se você fosse o seu dominador. Isso porque o verdadeiro ide implica em mansidão, que não pode se materializar nos genocídios e guerras promovidos para impedir a independência dessas nações. Isso porque o verdadeiro ide implica em reconhecer a imagem de Deus no rosto do Outro, que não pode se materializar na forma de tortura, exploração e escravidão.

Depois desse discurso, Dona Maria Deolinda tentou dedicar sua vida à alfabetização dos nativos de Guiné Bissau por meio da catequese, a fim de que esse sacrifício feito pelos europeus não fosse em vão. O que o padre esqueceu de avisar-lhe é que esse tipo de missão não era verdadeiramente evangelística, como realizou Paulo quando foi enviado aos gentios, mas era uma missão civilizadora a serviço de um Império do Ocidente hegemônico, que não buscava a salvação de outras pessoas além de si mesmo — ou melhor, do homem branco. Se a missão de D. Linda fosse verdadeira, ela teria outra atitude ao descobrir pelo que passava Ndani em sua própria casa ao invés de colocá-la para fora e escolher proteger o seu próprio marido.

O excerto retirado do romance é uma breve exemplificação de como a história mostra que, por séculos, a igreja institucional escolheu deturpar a Palavra de Deus para defender valores mundanos e infernais, como esses propagados pelo colonialismo europeu em terras africanas. Não é fácil apagar séculos de hermenêuticas deturpadas e teologias hereges. Num dia como a Reforma Protestante, talvez seja necessário relembrar o verdadeiro valor de uma declaração como Sola Scriptura para nos lembrarmos de que é papel dos cristãos difundir a verdadeira salvação (que não vem por assimilação cultural, mas por uma completa mudança de mentalidade no poder do Espírito Santo) e viver um Reino de justiça, amor e paz, onde não há lugar para a pobreza e a discriminação.

Sign up to discover human stories that deepen your understanding of the world.

Free

Distraction-free reading. No ads.

Organize your knowledge with lists and highlights.

Tell your story. Find your audience.

Membership

Read member-only stories

Support writers you read most

Earn money for your writing

Listen to audio narrations

Read offline with the Medium app

--

--

Maria Carolina de Souza
Maria Carolina de Souza

Written by Maria Carolina de Souza

eu nem tenho mais o cabelo loiro, mas essa foto me deixa chique. escrevo sobre a vida, tanto quando ela é boa quanto quando ela é dolorida.

No responses yet

Write a response