Um dia ordinário

Maria Carolina de Souza
4 min readJul 6, 2021

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Eu estava dentro de casa quando começou a nevar. Pelo menos é isso que os meus pais dizem ao contar essa história. Na realidade, eu estava muito distante, ao norte de um reino cujo nome não aparece em nenhum dos nossos mapas. Fazia extremo frio, completamente incompatível com o clima de minha cidade natal no Ceará, e eu cavalgava lentamente seguindo meu rei para a batalha. Ouvia dizerem pelo acampamento que a luta estava perdida por conta da neve que nos assolava e provavelmente foi a essa altura que começou a nevar em minha casa.

Todavia, eu não me dei conta disso e fui defender nossos propósitos bélicos diante dos companheiros de armas. A luta não estava perdida, pois nossa causa sempre foi legítima. Aquele homem sob cujos estandartes nós caminhamos é o nosso verdadeiro rei e, por isso, nós entregamos nossas espadas a ele. Pelo menos era isso que o personagem do capítulo estava prestes a dizer.

Não ouvi sua resposta, pois nesse momento meus pais chegaram em casa e viram que estava nevando. Esse é um fato extraordinário, pelo visto, mas eu não poderia explicar por quê. Sempre vi a neve em casa. Já tinha me acostumado àquele frio, tanto que me envolvia no cobertor. O vento tocava meu rosto com frequência e eu não aguentava mais me mover em meio àqueles montes brancos que se formavam no chão. Mas aquilo ainda não era nada perto do verdadeiro inverno que estava por vir; esse sim me atemorizava. Havia séculos que eu me preocupava com ele, esperando-o chegar e ver de que modo viraria todo o enredo da minha vida de cabeça para baixo.

Talvez essa tenha sido a reviravolta na vida de meus pais. Chegaram em casa suados porque lá fora não fazia menos que 35°C e, ao se depararem com a nevasca na sala de estar, entraram em desespero. Provavelmente a mudança brusca de cenário lhes despertou esse sentimento. Eu também enlouqueceria se virasse a página e de repente o inverno já tivesse passado e eu não tivesse acompanhado a sua trajetória — afinal, estou criando grandes expectativas para esse inverno. Imagina se finalizo um capítulo e o grande protagonista é executado? Não, isso não faria sentido algum.

Então entendo eles terem surtado. Eu também surtaria.

Mas não é como se a neve em si fosse o problema. Vez ou outra eu andava pela casa e me deparava com animais selvagens, como lobos, leões e corvos que conversam comigo sobre pessoas que já amei. Já precisei lutar contra vampiros que dominavam o mundo, solucionar mistérios dos mais profundos e respirar debaixo da água. Lembro de uma vez que uma mulher foi atacada por centauros — e eu deixei que isso acontecesse — e de quando libertei um povo que foi subjugado durante séculos por conta da cor do seu sangue. Tudo isso dentro do meu quarto. Por favor, um pouco de neve não é nada.

Eles acharam que eu tinha superpoderes, tipo, de fazer cair neve dentro de casa. Isso sim era um absurdo. Eu sempre fui uma pessoa normal — apesar de uma vez um cara ter chegado aqui em casa no meio da noite falando que eu podia fazer magia ou coisa do tipo. Mas não, agora eu era uma pessoa normal, de verdade, acho. Além do mais, nunca vi aqui uma pessoa mudar o clima. Verdade que ano passado eu pude gerar eletricidade e controlar relâmpagos e mês passado eu jogava raios nas pessoas. Mas não mudar o clima. Não fazer nevar. Isso não era trabalho meu.

Ah não. Lembro que há seis meses eu criei uma tempestade. Mas ainda assim, eu não estava fazendo nevar.

Mas eles não entendiam isso. Todas as vezes que contam essa história falam que eu fiz a neve cair dentro de casa enquanto lia um livro. Diante das outras pessoas, eu não nego e deixo que eles acreditem na fantasia deles. As outras pessoas acham loucura e completamente irracional, talvez porque vejam nos meus olhos que eu só concordo para que eles não passem vergonha sozinhos. Não dá pra ser totalmente sincera nessas ocasiões.

Ainda assim, é sério. Eu não fiz a neve cair dentro de casa. Ela simplesmente caía, assim como caía no acampamento bélico. Assim como lá fora fazia 35°C. Assim como as ondas se formavam no mar. Assim como um menino respirava debaixo da água. Assim como amizades se fazem e se desfazem. Assim como duas pessoas são na verdade uma só. Assim como pessoas são subjugadas por não serem bruxas. Assim como pessoas são subjugadas por séculos por conta da cor da sua pele. Assim como dragões aterrorizam nações. Assim como nações têm bombas para destruir o mundo.

Num dia ordinário, caía neve dentro de casa, mas meu coração permanecia aquecido pela vida real.

Num dia ordinário, fazia 35°C fora de casa, mas o coração de muitos ardia de frio.

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Maria Carolina de Souza
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Written by Maria Carolina de Souza

eu nem tenho mais o cabelo loiro, mas essa foto me deixa chique. escrevo sobre a vida, tanto quando ela é boa quanto quando ela é dolorida.

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